domingo, 18 de outubro de 2015

Um drone para chamar de seu - conto inspirado na minha filha Helena

Não se ouve mais o clique porque o celular dela não faz barulho quando fotografa, mas se fizesse, deveria ser o décimo seguido, ou mais. Helena não se cansa de tirar fotos de si mesma, os selfies, como se diz hoje em dia. E, é claro, depois disso ela posta tudinho na rede. São centenas de perfis sorridentes que se intercalam. Os amigos curtem, dizem que ela é linda, maravilhosa, gatona, essas coisas que acalentam o ego.

Semana passada ela leu uma matéria na internet informando que a indústria se prepara para produzir drones em série em brevíssimo tempo, com o objetivo de vendê-los, não para qualquer finalidade militar, nem para o meio ambiente, menos ainda permitir acesso a lugares ermos, nada disso, é para uso e fruto do cidadão comum, aquele que não quer perder um clique de suas 24 horas ou ter o incômodo de, ele mesmo, interromper seu divertimento para registrar suas peripécias. Para quê?, se o drone pode fazer isso por ele.


Ah, que maravilha, pensou Helena. Depois de trocar pela quarta vez este ano seu smartphone, ela finalmente poderá descansar de todas essas obsolescências e comprar um drone. Melhor notícia do ano!

Neste momento, Helena está onde mais gosta, em frente ao espelho, estudando minuciosamente seu melhor ângulo: arqueia as sobrancelhas, abre a boca como que ao acaso, deixa uma mecha de cabelo se fingir de franja. Depois ela decora as posições preferidas e se põe espontaneamente nos lugares escolhidos para as fotos que encantarão sua tchurma.

Haja memória no smartphone. Bem verdade que toda a semana ela apaga um monte de fotos, fica de saco cheio delas e se dedica com afinco à árdua tarefa de encontrar novos lugares, novas poses, uma nova Helena que continue encantando-a e às gentes da rede. Não é nada fácil, ela sabe. Lembra quando postou sua imagem sentada na varanda de casa, sorrindo discretamente, absorta, como quem pensasse na vida. Apenas 27 curtidas e dois comentários. Aquilo foi humilhante, ultrajante mesmo. E Helena aprendeu a lição. Dali pra frente, seus milhares de amigos virtuais iriam ver só. Ela se esmera, se supera, dia a dia eles encontram fotos inusitadas, perfeitas, estilosas, inovadoras.

Não poupa energia e criatividade essa Helena. Navega na rede pesquisando cenários exóticos. Depois baixa programas incríveis que a mudam de lugar com a pessoa que originalmente aparece na imagem e fazem qualquer um crer que você está lá mesmo onde se vê. A tecnologia é divina, ela admite.

Sincronizada e oportuna também é Helena. Em época de Copa do Mundo, por exemplo, ela trocou de posição com o goleiro em uma defesa genial. Numa partida de tênis, duelava com Serena Williams. Helena é especialista em esportes, já posou de jogadora de vôlei, basquete, nadadora, ginasta, patinadora e até esgrimista. Todas vencedoras, é claro, Helena gosta de ser campeã.

Mas o segredo do sucesso, ela sabe, é o sorriso franco, aberto, a felicidade estampada na cara, todos os segundos do dia. Helena pensa que, quando ela tiver o drone - ah essa espera a consome -, ela poderá, por exemplo, ter fotos suas dormindo sorrindo, porque aí seria crível. Por razões óbvias, não se pode tirar um selfie dormindo, a não ser que ela alegasse ser sonâmbula, mas isso seria meio que incrível, então melhor não abusar. Porém, com um drone, a coisa muda de figura. Ela pode dizer que se surpreendeu de ver que até dormindo ela sorri e aí pode contar um sonho maravilhoso para justificar aquele sorriso tão meigo. Melhor já ir treinando para fechar os olhos sem piscar nadinha, uma autêntica dorminhoca afortunada. Ah, os amigos morrerão de inveja. Que coisa boa ser tão feliz!

Hoje Helena irá ao dentista, caiu uma obturação e dói quando ela come. Hum, dor é algo terrível, insuportável. Ela já se encheu de analgésicos e esquematizou as fotos que fará no consultório. Como ainda não tem o drone – nunca pensou que sentisse tanta falta -, vai ter que pedir à assistente do dentista, veja o embaraço, para fotografá-la, sorrindo amplamente naquela confortável cadeira, com o polegar pra cima, para que não haja dúvidas - nunca pode haver dúvidas sobre sua felicidade e mesmo uma ida ao dentista é prazerosa para Helena. Ah como ela sabe viver, aproveitar cada segundo!

Hum, esse pensamento de saber viver não foi legal, uma ruga de preocupação delineou-se na testa de Helena. E quando ela não estiver mais aqui? Uma coisa é certa, até lá ela terá seu drone, ah, sim senhor, e deixará tudo no esquema para que seja clicada em seu esquife com tampa de vidro, ornamentada por lindas flores silvestres, as madeixas sobre o colo, parcialmente entrelaçadas com algumas pétalas. Os lábios, ela os quer ligeiramente entreabertos e puxados lateralmente, um último sorriso, encantador. Helena já está na internet à cata de necromaquiadores, vai pré-contratar, para dar as instruções em detalhes, ela é cautelosa.

E assim prossegue nosso feixe de luz, à noite sonhando um sonho repetido, atormentador, talvez ousasse pronunciar pesadelo, se esta palavra não estivesse banida de seu vocabulário. Parece ter sido uma cena de uma peça que alguém contou, não se lembra quem, não se lembra quando. Lá está Helena, em plena Nova York, no Central Park, sozinha, sem uma câmera sequer, nenhum drone, desconectada, perdida, gritando aos quatro ventos: Who am I? Who am I?