Dizem os entendidos que julgam e distribuem o Oscar que “12 anos de escravidão” foi o melhor filme da safra. Por acaso o assisti na quinta-feira que antecede o Carnaval, ciente dos, então, rumores de “já ganhou”. Um bom filme, sem dúvida, mas é preciso vê-lo com o pé atrás.
Já de saída, duvidei do título: como apenas 12 anos de escravidão? Não que eu ache pouco, nem uma hora sequer o seria, mas é sabido que a escravidão durou muito, muito mais, inclusive nos Estados Unidos, onde se passa o filme, na década de 1840.
Sem querer ser ‘spoiler’, já que o próprio resumo do filme assim o diz, trata-se fundamentalmente do sequestro de um jovem negro, classe média, casado e com dois filhos, músico, letrado, com vida confortável e trabalho honesto, escravo liberto, que é subitamente enganado, embebedado e assim sequestrado para ser vendido como escravo. Ele passa 12 anos nessa situação.
Exploração, maus tratos, péssimos tratos, tratos piores ainda e o que mais você já sabe e conhece do que foi esse período abominável da história humana, em qualquer parte do mundo. Tudo retratado pelo filme, sob a ótica do jovem injustamente escravizado. E é aí que precisamos focar.
Para mim, a beleza e a importância do filme estão no olhar crítico que precisamos ter sobre o todo, sobre aquele conjunto imenso de homens, mulheres e crianças que foram escravizados, não importa se sequestrados ou não, se ex-escravos ou não, para que nunca mais se repita horror semelhante.
A pungente situação de injustiça e atrocidade existiu não apenas para aquele que durante uma dúzia de anos o sofreu na pele. Isso reduziria o absurdo do cativeiro e da servidão e faria mais palatável a aceitação das terríveis consequências vindouras: discrepância enorme entre pobres e ricos, oportunidades tremendamente desiguais em termos de acesso à saúde, educação, cultura, trabalho, enfim, cidadania, para reduzir ao mínimo a análise da questão nos dias atuais.
Não estamos onde estamos por acaso. Os negros constituem hoje a maioria dos pobres, dos que têm menos anos de escolaridade, dos que disputam os empregos mais humildes e mal pagos, dos que são presidiários. E nada disso é coincidência.
Ao fim e ao cabo, e mesmo sem entrar nos meandros dos interesses econômicos que incentivaram tantas mudanças sociais, é preciso que se diga que a escravidão persiste ainda e em imensa escala, se não através do que nos foi dogmaticamente ensinado a entender como tal, através de tantas outras formas de exploração, espoliação, humilhação e falta de respeito, para citar tímidos exemplos.
Este é um filme que passa cotidianamente nas ruas de países como o nosso, quando driblamos o menino descalço que vende balas no sinal, quando desviamos nosso olhar do mendigo que dorme sob o viaduto, quando escolhemos um caminho que não nos leve aos acessos das favelas. É um filme que fingimos não ver, que preferimos não ver e, acho, que não se seria premiado pela academia não.
Querida Rita, sempre me perguntei sobre um fenômeno que ocorre quando "purgamos ou purificamos" algo através da arte, a dita CATARSE. É claro que não vamos generalizar, mas fico a me perguntar o porquê desse fenômeno só ocorrer em contato com a arte e não com a realidade em si. Na maioria das vezes a indignação fica apenas na sala de projeção e ao longo do caminho para a casa, remoesse mentalmente e no entanto, é só isso. Não agimos, só pensamos, nos indignamos, vociferamos com amigos, na internet, mas é só isso.
ResponderExcluirA escravidão é uma violência cometido contra o ser. O indivíduo tem uma violência dentro de si e, as vezes, a realidade experienciada corrobora na manifestação de ações de extrema violência, como presenciamos nos linchamentos (isso apenas para ficar no âmbito de nossa atual realidade). Pessoas cujo grau de instrução é alto apoiando barbáries como essas. Tenho um eterno conflito de concepção quanto ao termo "inteligência", pois para mim ele só pode ser atribuído para pessoas que a usem para o bem e não para o mal. Usar a dita inteligência para o mal, para mim é irracional e se é irracional, não pode ser inteligência.
Enfim, como sempre, fico saltando de galho em galho e me disperso, essa é minha natureza mesmo, me desculpe. Adorei seu post, ainda não assisti ao filme e digo a você que talvez não assista justamente porque sou terrivelmente covarde e não consigo ver essa violência nem mesmo nas telinhas. Mas quem sabe uma hora dessas não me sinta menos covarde e assista.
Obrigada, Helene, por sua participação sempre tão instigante. Esse conceito de inteligência é muito interessante, quiçá todos o adotasse. Recentemente o que me chocou deveras foi saber que a punição para os torcedores racistas da Espanha foi apenas não poderem mais assistir aos jogos nos estádios. Aqui racismo é crime inafiançável, é cadeia, e isso é o mínimo, mas lá fora, no dito 1º mundo, não é. Aí pensei em talvez usar um jegue quando eu for à terra deles, mas depois lembrei das touradas, melhor não.
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