quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O ar da graça



Estou me deliciando com a leitura de Moby Dick. Em várias passagens Melville dá literalmente o ar da graça. E o que melhor para começar o ano do que um texto inteligente que vai num crescente suspense conduzindo o leitor a momentos hilariantes? Precisamos nos lembrar de rir com mais frequência, bom para o coração e para a juventude.

Espero que você possa se divertir com a passagem que selecionei, um pouco longa, mas vale a pena. O protagonista, Ismael, não encontrava vaga em nenhuma estalagem até que recebe e aceita a oferta de dividir uma cama de casal com um arpoador de pele morena que ainda não tinha chegado, apesar do adiantado da hora.

(págs 60 a 66, com cortes)
“Que espécie de sujeito é esse; chega sempre tão tarde?
- Não, ... mas esta noite saiu para comerciar suas mercadorias e não sei o que no mundo o está atrasando tanto. Só se ele não conseguiu vender a cabeça.
- Vender a cabeça? O que significa isso? – comecei a ficar colérico...
- Precisamente isso – respondeu o estalajadeiro – e eu lhe disse que não conseguiria vendê-la aqui; pois a praça está abarrotada.
- De quê – berrei
- De cabeças, naturalmente. Você não acha que há cabeças demais no mundo?
- Fique sabendo de uma coisa, estalajadeiro – observei muito calmo - , melhor parar de brincadeiras;não sou mais criança.
- Talvez não, mas lhe garanto que o senhor pode se dar mal se o arpoador souber que anda difamando a abeça dele.
- Quebrá-la-ei para ele.
- Já está quebrada – tornou ele.
- Quebrada?
- Exatamente. É por isso que não consegue vendê-la.


- Devemos esclarecer isso tudo o mais rapidamente possível. Vim a este estabelecimento porque preciso de uma cama, ao que o senhor respondeu poder ofertar-me apenas metade de uma, visto que a outra metade pertence a um arpoador. E sobre esse arpoador, que ainda não vi, o senhor insiste em contar-me as histórias mais disparatadas e exasperantes, cuja tendência é provocar em mim uma sensação desagradável com relação a esse homem. Agora lhe peço de uma vez por todas que me diga quem é esse arpoador e se estarei seguro sob todos os aspectos ao passar a noite com ele...
- Acalme-se, acalme-se, o arpoador de que lhe venho falando acabou de chegar dos mares do Sul, onde comprou um lote de cabeças embalsamadas da Nova Zelândia e vendeu-as todas, menos uma; e é essa que ele está tentando vender esta noite...
... o que pensar de um arpoador que passava fora toda a noite de sábado, e entrava no santificado domingo entregue a um negócio tão canibal como esse de vender cabeças de idólatra mortos? – Diante de tudo que me disse, fique certo disso, estalajadeiro,o arpoador é um homem perigoso.
- Paga em dia. Mas venha, é melhor que se deite, é uma bela cama.
... por fim deslizei ao largo, rumo à terra do sono, quando escutei o som de passos pesados no corredor e vislumbrei uma débil luz a penetrar no quarto por baixo da porta.
“Deus me proteja”, pensei, “esse deve ser o arpoador, o infernal vendedor de cabeças. Mas permaneci imóvel e decidido a não falar enquanto ele não me dirigisse a palavra. Carregando uma vela em uma das mãos e a tal cabeça na outra, o arpoador entrou no quarto e, sem olhar para a cama, colocou a vela longe de mim...Eu estava ansioso por ver-lhe o rosto, mas ele se manteve virado por algum tempo, enquanto se ocupava em desamarrar a boca da bolsa. Feito isso, virou-se – e valha-me Deus! Que visão! Que rosto! Era de uma cor sombria, púrpura, amarela, aqui e lá marcada por grandes quadrados de aparência escura. “Sim, era justamente como eu imaginara. Aí está um terrível companheiro de cama. Andou brigando, ficou muito ferido e aqui está ele, chegando diretamente da casa do cirurgião.” Mas naquele momento ele virou o rosto para a luz, de maneira que pude ver claramente: aqueles quadrados negros não eram esparadrapos, eram manchas, de uma espécie ou de outra. Inicialmente fiquei sem saber o que pensar, mas logo me ocorreu uma ideia. Lembrei-me da história de um homem branco – também baleeiro que, tenha caído entre os canibais, foi tatuado por eles. Concluí então que esse arpoador, no curso de suas muitas e distantes viagens, devia ter tido aventura semelhante. E, afinal de contas, o que importa isso, pensei eu. Trata-se apenas da aparência externa de uma pessoa que pode ser honesta dentro de qualquer tipo de pele. Mas então como explicar sua estranha tez, ou seja, aquela parte da tez que rodeava os quadrados de tatuagem e que nada tinha a ver com eles? Talvez fosse apenas uma boa casca de tostado tropical; mas nunca ouvi dizer que um sol quente tostasse de amarelo púrpura um homem branco...o arpoador tirou de sua bolsa uma espécie de machadinha indígena e uma sacola de pela de foca, ainda com os pelos. Colocou essas coisas sobre a velha arca no meio do quarto, pegou então a cabeça neozelandesa e enfiou-a no saco. Depois tirou o chapéu de castor e quando se aproximou, quase gritei diante de uma nova surpresa. Não tinha um fio de cabelo na cabeça; nenhum, a não ser um pequeno chumaço retorcido para cima. Sua cabeça lisa e púrpura parecia um crânio defumado. Se o estranho não estivesse entre mim e a porta, eu teria saído por ela o mais depressa possível.


Naquele momento cheguei a pensar em saltar pela janela, mas eu estava nos fundos de um segundo andar. Não sou covarde, mas o efeito que produziu em mim aquele vendedor de cabeças, tratante e purpúreo, ia além de toda a compreensão...

Sem se dar conta do tormento pelo qual eu passava, ele continuou a despir-se e afinal mostrou o peito e os braços. Juro que essas partes antes recobertas axadrezavam-se com os mesmos quadrados que ele possuía no rosto; suas costas estavam igualmente repletas dos mesmos quadrados escuros. Parecia que ele havia estado em uma guerra dos 30 anos, da qual escapara com uma camisa de esparadrapos. Tinha também as pernas marcadas, como se um bando de rãs verde-escuras estivessem subido pelo caule de palmeiras novas. Era evidente agora que se tratava de algum abominável selvagem acolhido por uma baleeiro nos mares do Sul, e que depois havia desembarcado nesse país cristão. Estremeci só ao pensar nisso. Um vendedor de cabeças – talvez das cabeças de seus próprios irmãos. Ele poderia cobiçar a minha – céus! E aquela machadinha indígena.

Não tive muito tempo para estremecer, pois o selvagem logo começou a fazer algo que prendeu completamente minha atenção e que acabou por me convencer de que se tratava de fato de um pagão. Dirigindo-se ao seu pesado capote, remexeu os bolsos e por fim tirou uma curiosa pequena imagem deformada com uma corcunda, da cor exata de um bebê de três dias nascido no velho Congo. Lembrando-me da cabeça embalsamada, cheguei a pensar que esse bonequinho negro fosse de fato uma criancinha conservada de maneira semelhante. Mas, ao perceber que não se mexia, e brilhava quase tanto como ébano polido, concluí que se tratava apenas de um ídolo de madeira. Naquele momento o selvagem dirigiu-se para a lareira vazia e, retirando-lhe o anteparo, colocou a pequena imagem corcovada de pé, como um boliche, entre os cães da mesma lareira...

Todo esse estranho modo de proceder só contribuiu para aumentar meu mal-estar, e, vendo que ele estava terminando aquele ritual e pronto para deitar-se na cama, julguei chegado o momento, antes que a luz se apagasse, de quebrar o encanto ao qual por tanto tempo eu ficaria preso.

Mas o tempo que perdi imaginando o que iria dizer foi fatal. Pegando na mesa a machadinha, ele examinou-lhe a cabeça por um instante então, aproximando-a à vela, com a boca no cabo tirou grandes baforadas de fumaça do tabaco. Em seguida apagou a vela com a machadinha entre os dentes aquele bravo canibal pulou para a cama, junto de mim. Gritei, pois não podia mais evitá-lo; e espantado, ele começou a apalpar-me...


4 comentários:

  1. Querida Rita, bom ver seu entusiamo com com o livro. Tomara possamos ler, todos do CLUBE , ESTA OBRA MARAVILHOSA!
    fELIZ 2013 ao BLOG TAMBÉM! Bela maneira de começar o ano!
    Muito boa, sua seleção!
    Elô.

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  2. Ah!!!!!!!!!!!!! Coitado e o que aconteceu depois??????????? Que maldade Rita rsrsrsrs, é isso que torna a narrativa tão desejada, tao viva.

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  3. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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  4. Pois é, Elô, Helene, é pra deixar vocês curiosas. O livro é muito bom. Acho incrível que uma obra tão antiga permaneça com tantos encantos. E olhe que não tenho paixão especial pelo mar, muito menos por baleias, mas uma história bem contada é tudo. Agradeço a participação de vocês. Bjs.

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