sábado, 27 de dezembro de 2014

Um poema de presente às Cataratas de Foz do Iguaçu



Olho as águas caindo sem parar
Num moto-contínuo
de força, energia, vibração, poder.
Quedas sem fim me fascinam.
Estonteante, de tão belo.

Um imenso entorno- floresta
verde-água, verde-bandeira, verde-vida
num límpido céu de azul-contraste.

Chuviscos de energia me atingem.
Respiro o molhado 
que sobe das pedras
e esfumaça o ar.
Olhos fechados,
braços abertos
ouvidos atentos
à grande concha sem mar.

Fico ali, absorvendo.
Me absolvendo?

Imagem-memória
quero  tecer metáforas 
para os abismos do eu:
é depois que caímos que podemos
reerguer o ser humano à sua altura?

Água-mãe
que deixa teus filhos beberem da fonte
da pedra que canta
(como encantou aos índios e a Santos Dumont)
Deságue, foz de tudo
te conserve Iguaçu*.


* Iguaçu significa a pedra que canta, na língua Guarani

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

As cores da Copa - 3º lugar em Crônicas - Prêmio UFF de Literatura 2014

A partir da esquerda, Benites (2º lugar em Contos), Benito (1º lugar em Contos),
Rita (3º lugar em Crônicas) e Novaes/ (classificado em Poesias)

AS CORES DA COPA

Se você tem mais do que quarenta anos, deve lembrar que, no nosso tempo de criança, televisão em cores era luxo para poucos. Eu não era um desses poucos. Lá em casa o aparelho preto e branco, de formato arredondado e bojudo, com uma baita profundidade e uma antena desengonçada onde vira e mexe um pedaço de bombril se fazia notar, ficava sobre um móvel que a gente chamava de arca, na sala. Não era propriamente uma arca, estava mais para uma mistura de cristaleira com aparador, mas dava para apoiar a tevê, e isso é o que importava. 

O ano era 1970 e na minha inocente infância veio a brilhante ideia para assistir à Copa do Mundo que nem gente rica: transformar a tevê preto e branca em tevê em cores. Reunimos os colegas na calçada, no descanso do pique-bandeira que jogávamos no meio da rua, e colocamos a cabeça para funcionar. Como fazer, se dinheiro quase não havia?


A ideia vencedora foi arrecadar um pouquinho de cada - pouquinho mesmo, que naquela época nenhum de nós recebia mesada, e o que conseguíamos era fruto de carregar uma sacola de compras de uma senhorinha daqui, ir buscar uma cerveja no bar de lá, passar uma rifa e coisas do tipo – e resolver o problema na papelaria. 

Lá chegando, fizemos a escolha dos tons: verde, azul e amarelo, afinal todo mundo sabia as cores de nossa bandeira. Um papel celofane de cada uma dessas cores e fita durex. Tesoura em punho, nos pusemos a cortar faixas do mesmo tamanho, dividindo a área da tevê em três retângulos de altura e larguras similares.

A mãe tinha dado uma saída, acho que à feira ou à quitanda, coisas que hoje quase não existem mais, e eu e a turma estávamos preparando a tevê para a cirurgia. Quando ela chegou, foi logo dando uma bronca na gente, onde estávamos com a cabeça para ficar colando plástico na televisão? Mas aí ela olhou de novo, viu as cores e sacou nossa intenção. Não sei se eram os meus ou os olhos dela que se marearam naquele momento, e ela abaixou o tom da voz, sentou-se e falou mansinho que a nossa ideia era muito boa, mas que a gente ia ver caras amarelas, corpos azuis e pés verdes porque as cores não seriam as cores de verdade da imagem, mas faixas coloridas soltas sobre o que aparecesse na tela. “A gente sabe, tia”, foi a resposta da minha amiga Solange, mas pelo menos assim podemos ver os jogos sem ser em cinza.

À noite eu ouvi minha mãe contando tudo pro meu pai, porque não havia porta separando a sala, onde eu dormia, do quarto deles, apenas uma cortina, e vira e mexe eu fingia estar nos braços de Morfeu para adivinhar o que se passava naquele quarto. Minha mãe falava baixinho, mas deu para notar ela perguntando se não tinha mesmo como comprarmos uma televisão colorida e meu pai disse um “tá maluca?, é caríssimo” definitivo.

Bem, mesmo com o banho de água fria que ganhamos, eu e a criançada continuamos achando nossa ideia boa. Tiramos os plásticos, alisamos direitinho e guardamos tudo para dali a duas semanas, quando começaria o grande evento mundial.

Na véspera do jogo de abertura, porém, minha mãe vem com outro balde: avisa que meus avós maternos tinham nos convidado para assistir aos jogos lá na casa deles. Eu protestei: puxa, mãe, a turma da rua ia ver aqui em casa, com a tevê colorida. Ela disse que eu podia dar as faixas de celofane para a Solange e o pessoal veria na casa dela, que ela já tinha até perguntado à Célia, mãe da minha amiga, se podia, e estava tudo certo.

Isso, porém, não me convenceu nem me agradou, mas aí mamãe falou que a vovó ia fazer nhoque com bife acebolado e broa de milho para o lanche. Pegou no meu fraco. Se você conhecesse a comida da minha avó, também sucumbiria. Eu e meus primos sempre podíamos ajudar a preparar o nhoque sobre a grande mesa de fórmica vermelha que vovó tinha na copa. Espalhávamos o trigo, enquanto vovó fazia a massa, depois enrolávamos tiras grandes e finas e cortávamos fazendo ta-ta-ta-ta-tá sobre a mesa. Uma beleza. Então levávamos com cuidado, em fila indiana, para a panela de água fervente que borbulhava no fogão da cozinha adjacente e, à medida em que íamos tirando com a escumadeira as pequenas porções arredondadas de batata, vovó finalizava seu molho de tomate perfumado com manjericão, derramando-o sobre um pirex ovalado e transparente. O bife era um show à parte, exclusivo da vovó. Ela tinha uma frigideira de ferro que guardava desde os tempos em que morou na roça, e colocava um pouquinho de banha de porco e o bife, em fogo bem alto. Subia uma labareda danada. A gente olhava como um espetáculo circense, boca aberta, qual fôssemos nós a engolir aquele fogaréu. O bife ficava macio, suculento e cheiroso como o quê.

Bem, então tudo certo. Eu ia ter que explicar aos meus amigos da mudança de planos, me desculpar, mas a causa era boa – e gostosa -, e além do mais, todos sabíamos que às crianças cabia obedecer aos pais sem pestanejar, não adiantava contestar não.

No dia do jogo, assim que chegamos à casa dos meus avós, o vovô estava plantado na varanda que nem dois de paus, não deixava a gente entrar por ali, que era a passagem para a sala. “Dá a volta, ele disse. Por aqui agora só os adultos”. Para ajudar a vovó com a comida, nós crianças tínhamos que seguir pelo corredor de plantas na lateral da casa, desviar dos espinhos das roseiras e entrar pela porta dos fundos. Vi de relance que a tevê estava coberta, um suspense danado, e pensei: será que ele também colocou papel celofane colorido? Será que mamãe contou da minha ideia? Tomara que sim.

Neste dia, a copa-cozinha estava especial. Ao lado da geladeira antiga, sobre a qual ficava sempre um simpático pinguim que adorávamos, minha vozinha deixou um saco de bolas de gás nas cores do Brasil. Cada um de nós podia encher e escrever seu nome sobre quantas bolas achássemos que o Brasil faria de gols e, para quem acertasse o resultado, tinha um prêmio surpresa no final. O dia prometia.


Terminada nossa divertida tarefa culinária, o relógio cuco da sala bateu suas badaladas e nossa entrada foi liberada. Aí eu perdi o fôlego. Mal pude acreditar. O meu avô tinha comprado uma televisão colorida de verdade e íamos ver os jogos todos em cores, que nem gente cheia da grana. Ai que linda a camisa da nossa seleção, amarelo canário, ai que calção bacana aquele azulão rei, ai que pernas morenas e cabeludas o Leão tinha. Que goleiraço, meu Deus, eu pensei. Dei um pulo nas costas do meu avô e saí beijando ele que nem uma louca. Obrigada, vô, obrigada vô, muito obrigada vô. “Peraí menina, que assim você me sufoca. Agora fica quietinha que o jogo já vai começar”.

Eu cantei o hino brasileiro todinho de pé, com a mão no peito, emocionada de ver minha seleção jogar pela primeira vez, emocionada de ver uma imagem colorida na televisão pela primeira vez. Ah, aquele dia, aquele jogo, que golaço fez o meu avô, treze ídolos no campo, o maior deles ali ao meu lado, no sofá.