A partir da esquerda, Benites (2º lugar em Contos), Benito (1º lugar em Contos), Rita (3º lugar em Crônicas) e Novaes/ (classificado em Poesias) |
AS CORES DA COPA
Se você tem mais do que quarenta anos, deve lembrar que, no
nosso tempo de criança, televisão em cores era luxo para poucos. Eu não era um desses poucos. Lá em casa o aparelho preto e
branco, de formato arredondado e bojudo, com uma baita profundidade e uma
antena desengonçada onde vira e mexe um pedaço de bombril se fazia notar,
ficava sobre um móvel que a gente chamava de arca, na sala. Não era
propriamente uma arca, estava mais para uma mistura de cristaleira com aparador,
mas dava para apoiar a tevê, e isso é o que importava.
O ano era 1970 e na minha inocente infância veio a brilhante
ideia para assistir à Copa do Mundo que nem gente rica: transformar a tevê preto
e branca em tevê em
cores. Reunimos os colegas na calçada, no descanso do
pique-bandeira que jogávamos no meio da rua, e colocamos a cabeça para
funcionar. Como fazer, se dinheiro quase não havia?
A ideia vencedora foi arrecadar um pouquinho de cada -
pouquinho mesmo, que naquela época nenhum de nós recebia mesada, e o que
conseguíamos era fruto de carregar uma sacola de compras de uma senhorinha
daqui, ir buscar uma cerveja no bar de lá, passar uma rifa e coisas do tipo – e
resolver o problema na papelaria.
Lá chegando, fizemos a escolha dos tons: verde, azul e
amarelo, afinal todo mundo sabia as cores de nossa bandeira. Um papel celofane
de cada uma dessas cores e fita durex. Tesoura em punho, nos pusemos a cortar
faixas do mesmo tamanho, dividindo a área da tevê em três retângulos de altura
e larguras similares.
A mãe tinha dado uma saída, acho que à feira ou à quitanda,
coisas que hoje quase não existem mais, e eu e a turma estávamos preparando a
tevê para a cirurgia. Quando ela chegou, foi logo dando uma bronca na gente,
onde estávamos com a cabeça para ficar colando plástico na televisão? Mas aí
ela olhou de novo, viu as cores e sacou nossa intenção. Não sei se eram os meus
ou os olhos dela que se marearam naquele momento, e ela abaixou o tom da voz,
sentou-se e falou mansinho que a nossa ideia era muito boa, mas que a gente ia
ver caras amarelas, corpos azuis e pés verdes porque as cores não seriam as
cores de verdade da imagem, mas faixas coloridas soltas sobre o que aparecesse
na tela. “A gente sabe, tia”, foi a resposta da minha amiga Solange, mas pelo
menos assim podemos ver os jogos sem ser em cinza.
À noite eu ouvi minha mãe contando tudo pro meu pai, porque
não havia porta separando a sala, onde eu dormia, do quarto deles, apenas uma
cortina, e vira e mexe eu fingia estar nos braços de Morfeu para adivinhar o
que se passava naquele quarto. Minha mãe falava baixinho, mas deu para notar
ela perguntando se não tinha mesmo como comprarmos uma televisão colorida e meu
pai disse um “tá maluca?, é caríssimo” definitivo.
Bem, mesmo com o banho de água fria que ganhamos, eu e a
criançada continuamos achando nossa ideia boa. Tiramos os plásticos, alisamos
direitinho e guardamos tudo para dali a duas semanas, quando começaria o grande
evento mundial.
Na véspera do jogo de abertura, porém, minha mãe vem com outro
balde: avisa que meus avós maternos tinham nos convidado para assistir aos
jogos lá na casa deles. Eu protestei: puxa, mãe, a turma da rua ia ver aqui em
casa, com a tevê colorida. Ela disse que eu podia dar as faixas de celofane
para a Solange e o pessoal veria na casa dela, que ela já tinha até perguntado
à Célia, mãe da minha amiga, se podia, e estava tudo certo.
Isso, porém, não me convenceu nem me agradou, mas aí mamãe
falou que a vovó ia fazer nhoque com bife acebolado e broa de milho para o
lanche. Pegou no meu fraco. Se você conhecesse a comida da minha avó, também
sucumbiria. Eu e meus primos sempre podíamos ajudar a preparar o nhoque sobre a
grande mesa de fórmica vermelha que vovó tinha na copa. Espalhávamos o trigo,
enquanto vovó fazia a massa, depois enrolávamos tiras grandes e finas e
cortávamos fazendo ta-ta-ta-ta-tá sobre a mesa. Uma beleza. Então levávamos com
cuidado, em fila indiana, para a panela de água fervente que borbulhava no
fogão da cozinha adjacente e, à medida em que íamos tirando com a escumadeira
as pequenas porções arredondadas de batata, vovó finalizava seu molho de tomate
perfumado com manjericão, derramando-o sobre um pirex ovalado e transparente. O
bife era um show à parte, exclusivo da vovó. Ela tinha uma frigideira de ferro
que guardava desde os tempos em que morou na roça, e colocava um pouquinho de
banha de porco e o bife, em fogo bem alto. Subia uma labareda danada. A gente
olhava como um espetáculo circense, boca aberta, qual fôssemos nós a engolir
aquele fogaréu. O bife ficava macio, suculento e cheiroso como o quê.
Bem, então tudo certo. Eu ia ter que explicar aos meus amigos
da mudança de planos, me desculpar, mas a causa era boa – e gostosa -, e além
do mais, todos sabíamos que às crianças cabia obedecer aos pais sem pestanejar,
não adiantava contestar não.
No dia do jogo, assim que chegamos à casa dos meus avós, o
vovô estava plantado na varanda que nem dois de paus, não deixava a gente entrar por ali, que era
a passagem para a sala. “Dá a volta, ele disse. Por aqui agora só os adultos”. Para
ajudar a vovó com a comida, nós crianças tínhamos que seguir pelo corredor de
plantas na lateral da casa, desviar dos espinhos das roseiras e entrar pela
porta dos fundos. Vi de relance que a tevê estava coberta, um suspense danado,
e pensei: será que ele também colocou papel celofane colorido? Será que mamãe
contou da minha ideia? Tomara que sim.
Neste dia, a copa-cozinha estava especial. Ao lado da
geladeira antiga, sobre a qual ficava sempre um simpático pinguim que adorávamos,
minha vozinha deixou um saco de bolas de gás nas cores do Brasil. Cada um de
nós podia encher e escrever seu nome sobre quantas bolas achássemos que o
Brasil faria de gols e, para quem acertasse o resultado, tinha um prêmio
surpresa no final. O dia prometia.
Terminada nossa divertida tarefa culinária, o relógio cuco da
sala bateu suas badaladas e nossa entrada foi liberada. Aí eu perdi o fôlego.
Mal pude acreditar. O meu avô tinha comprado uma televisão colorida de verdade
e íamos ver os jogos todos em cores, que nem gente cheia da grana. Ai que linda
a camisa da nossa seleção, amarelo canário, ai que calção bacana aquele azulão
rei, ai que pernas morenas e cabeludas o Leão tinha. Que goleiraço, meu Deus,
eu pensei. Dei um pulo nas costas do meu avô e saí beijando ele que nem uma
louca. Obrigada, vô, obrigada vô, muito obrigada vô. “Peraí menina, que assim
você me sufoca. Agora fica quietinha que o jogo já vai começar”.
Eu cantei o hino brasileiro todinho de pé, com a mão no
peito, emocionada de ver minha seleção jogar pela primeira vez, emocionada de
ver uma imagem colorida na televisão pela primeira vez. Ah, aquele dia, aquele
jogo, que golaço fez o meu avô, treze ídolos no campo, o maior deles ali ao meu
lado, no sofá.
Parabéns, Rita! Emocionante relato nos dá daquele tempo e do amor da família.
ResponderExcluirSão as cores que ficam em nossas lembranças a reativar os sentimentos!
Obrigada, Elô. Ainda bem que carregamos essas lembranças coloridas também, não é mesmo?
ExcluirÓtimo conto Rita, tão singelo e ingênuo quanto uma criança pode ser. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada, Helene. Conservar a criança viva em nós, de alguma forma, é primordial para a vida, nos ajuda a encarar a dureza do mundo adulto.
ExcluirMuito emocionante o conto, Rita, parabéns! Bom voltar ao passado e lembrar um pouco de cada coisa descrita no texto, o tempo que ficou na lembrança. Maravilhoso o conto!
ResponderExcluirAbraços! Sonia Salim
Obrigada, Sonia. Há um tempo participei de uma discussão sobre o passado, o presente, qual o tempo que existe. Acho que sempre que lembramos do passado ele é o nosso tempo presente, assim como quando lembramos de algum querido que se foi, naquele momento ele está conosco. É uma forma serena que temos de brincar que dominamos um pouco do tempo, esse senhor absoluto.
ExcluirExcelente crônica, Rita, parabéns. Muito bem escrita com simplicidade e eficiência na língua, um ritmo claro, sem sobressaltos, sem falhas ou buracos. Linguagem bem enxuta segurando orações com rédeas curtas, gostosíssima de ler. E um assunto que envolve todos, pobres ou ricos, pois é universal.
ResponderExcluirUm grande abraço de amizade e admiração.
Carlos Rosa.
Puxa, Carlos, obrigada. Os comentários estimulantes, vindos de um exímio cronista como você, me deixaram muito feliz. Amizade e admiração recíprocos.
ExcluirRita, como te mandei já em outros espaços, no face e por mensagem, seu relato me fez viajar no tempo. Primeiro, essa artimanha de quem tinha tv preto e branco de colocar plástico colorido, nós crianças achávamos o máximo e nos sentíamos realmente como se a televisão se transformasse em tv colorida.
ResponderExcluirViajei também por conta das histórias das copas na visão de uma criança. No caso de sua crônica, a de uma adulta revivendo o olhar infantil.
A cada ponto de seu texto eu me colocava na cena, como se tivéssemos sido amigos de infância. Foi o literário com vínculos emocionais, o coração ditando sua escrita. Me senti bem leve depois de ler e reler.
Que bom, Benites! Adorei "o literário com vínculos emocionais". Chico achou um irmão alemão, eu achei um literário. Que venham outros!
ExcluirVolta ao passado cheia de surpresas e muita imaginação, excelente crônica, parabéns!
ResponderExcluirQue bom que vc gostou, Maria Lucia. Muito obrigada por deixar seu comentário.
ExcluirRitinha ,eu já havia comentado sua linda crônica,mas pelo jeito esqueci de algum clique e fiquei sem que meu carinho e parabéns chegassem a você .Adorei a crônica. Você sabe misturar lindamente as memórias factuais e afetivas-coisa de mestre.Tia Angelica
ResponderExcluirObrigada, tia. Às vezes me surpreendo como tantas coisas da infância ficaram bem arquivadas e, na hora de escrever ficção, elas me voltam assim como um presente. É muito gostoso poder misturar e reviver. Beijo grande.
ExcluirQuerida Rita,acabo de ler sua crônica.Linda!
ResponderExcluirComo bem dizia a canção--Recordar é viver.
Beijos ternos,
Vera.
Rita você me fez lembrar da casa da sua avó, que também frequentei muito e que foi uma época gostosa para todos nós. Tudo de bom, as comidinhas e o famoso angú de D. Nair. Quanto ao seu avó que aparentemente era muito sério, eu e ele demos muitas risadas e sei que fui tratada pelos dois como também fosse da mesma familia
ResponderExcluirObrigada, Iolita. Tenho muito presente a casa das avós, os avôs e as avós. Tempo gostoso de lembrar! Vovó Nair e vovô Guido sempre souberam receber com carinho o que fez com que os amigos de alguns fossem os amigos de todos. Beijo grande.
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