sexta-feira, 3 de abril de 2015

Provocação

O texto a seguir foi publicado, a convite do escritor e acadêmico Carlos Rosa Moreira,  no site da Academia Niteroiense de Letras (também pode ser visto no link abaixo). Qual a sua opinião a respeito do tema?


PROVOCAÇÃO

No começo de uma aula de português sobre concordância nominal, o professor afirmou: a língua é machista, então, em regra, havendo na frase um homem e dez mulheres, o adjetivo concorda com o masculino: homem e mulheres belos. Imediatamente me veio à cabeça um trecho do livro do colombiano Héctor Abad, em “A ausência que seremos”, onde relata que, em sua casa, eram ele, pai, mãe, empregada, uma freira e cinco irmãs. A mãe, à revelia das normas gramaticais, quando tinha que chamar os filhos, gritava ‘meninas’, porque eram maioria, e assim seguiam as frases com a concordância sempre no gênero que prevalecia em sua residência.

 A revelação que a outros olhos poderia parecer banal, para mim foi, de cara, o que me encantou no livro, especialmente a atitude da mãe do autor. E quando o assunto, sobre o qual em geral não paramos para pensar, reapareceu em uma aula, não pude resistir à ideia de escrever este texto: é preciso uma reforma em nossa gramática.
Não, não se trata de uma blague, verdadeiramente acredito que parte do sexismo que enfrentamos hoje em nossa sociedade brasileira, ainda com severas disparidades econômicas entre os salários de homens e mulheres para a mesma função, para ficar em um exemplo do dia a dia, poderia ser substancialmente reduzida com uma revisão nas regras de concordância. Afinal, a história se reescreve continuamente, de acordo com o contexto e o ponto de vista de quem a conta, e nós, humanos, podemos nos reinventar. Ou não?
A concordância tem um papel importante na compreensão da linguagem, mormente em línguas de morfologia rica como a nossa, e a preponderância do masculino sobre o feminino exerce uma inegável função de reafirmar a soberania do macho alfa em nosso cotidiano. É uma visão arcaica e retrógrada, não condizente com o século XXI. A língua que você usa 24 horas por dia não pode massificar uma situação de servilismo e submissão como esta, mesmo que escamoteada pelo que se chama tradição, origem, raízes do idioma.
Há um preconceito linguístico implícito, ou melhor, explícito mesmo, quando priorizamos o masculino nas concordâncias. E não é o único. Casos de silepse de pessoa, por exemplo, são considerados elegantes em frases como “Os leitores somos cada vez mais críticos”, mas não aceitos por muitos em construções do tipo “A gente somos da comunidade”. Ora, a ideia não é a mesma, a de uma concordância ideológica? Mas neste segundo caso diz-se que ‘a gente’ é modelo de representação da primeira pessoa, que há o caráter pronominal da expressão, ou seja, fórmulas gramaticalmente consagradas para refutar uma construção popular e específica de um grupo que a sociedade culta faz questão de manter alijado de seu cerne.


Fico pensando na reforma ortográfica em curso – cuja implantação foi adiada novamente para 2016 –, claramente voltada para o exterior, prevendo a unificação das regras do português escrito em todos os países que o têm como idioma oficial: Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e Angola. Fico pensando no machismo reinante em cada uma dessas nações. Comparo com o inglês, idioma no qual, além de  inexistir a distinção por gênero, há também outras formas que acabam por ajudar a sociedade a não perpetuar relações de subordinação, como o pronome ‘you’ ser usado indistintamente para pessoas comuns e autoridades, por exemplo. São nuances, mas que colaboram para que a sociedade tenha uma compreensão mais ou menos hierarquizada sobre si mesma.
Acho que uma reforma deste nível em nossa língua poderia, a médio e longo prazo, trazer efeitos surpreendentes, contribuir para formar uma sociedade mais igualitária, como, aliás, prevê um dos objetivos de nossa Carta Magna.
Nós, mulheres, pudemos votar em nosso país somente a partir de 1932, embora o direito tenha sido defendido por grandes nomes, como Machado de Assis, já em 1877. Às vezes, demora muito para que as ideias transformem-se em ações, em fatos, mas há que se ter um começo. Por que não agora?
É pena não poder abordar o tema com mais profundidade, porque me faltam instrumentos, não sou linguista, mas gostaria que o assunto ficasse para reflexão e servisse de provocação ao meio acadêmico. Quem sabe possa ser defendido com mais propriedade por especialistas que reconheçam algum mérito na questão.


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