Assisto, virando o rosto várias vezes, por nojo e repulsa, à
série Zumbi, agora em sua terceira temporada. Comecei vendo por falta de opção,
já que janeiro e fevereiro são meses sem estreias de séries, mas devo confessar
que gosto bastante, apesar do apelo sanguinário.
O motivo? Discute-se a humanidade, sobretudo. Como o homem
reage em situações extremas, em que a sobrevivência é a maior luta. Quem acha
que vale tudo no caos absoluto, sem regras, e quem acredita que, ainda assim os
princípios básicos da civilização devam prevalecer? O que efetivamente é básico
e o que é supérfluo? Como encarar tantas perdas seguidas de entes queridos? Como reagir ao medo, ao pavor de ser comido vivo por errantes canibais desprovidos de sentimento ou razão? Quem
somos nós no mais do mais íntimo de nós?
Nesta temporada, pelo que prenuncia o jornal, ficarão
patentes dois modos de agir bastante distintos: um liderado pelo grupo do Rick,
um ex-policial do bem que já abarcou integrantes bastante heterogêneos, e outro
pelo grupo do auto-intitulado ‘governador’, que engana uma parte de seus seguidores
e na verdade sai matando sem critério, para garantir armas, mantimentos,
transporte etc, com apoio da outra parte do bando.
Como você acha que se comportaria num mundo sem sanções, sem
prisão, onde as escolhas não tivessem consequências futuras porque o futuro
mesmo parece apenas uma miragem, um sonho, uma esperança?
O livro, o filme, a obra-prima que permanece atual
Há muitos anos li "Os Miseráveis" e adorei. Não me lembro
mais do estilo do Victor Hugo nem do vocabulário empregado, mas ficou marcada
aquela trama magistral que atravessa os séculos com uma história riquíssima e
atual. Depois, vi o filme umas duas vezes, e também gostei muito. Tinha
esquecido um pouco a parte em que aparece o Gavroche e o final da história e
senti a emoção toda de novo. Chorei, chorei....
Bem, de volta ao início do filme, então. A nova produção, um
musical, é primorosa. Algumas vezes achei que esse formato atenuou a tristeza e
a desgraça dos miseráveis, o que não sei se é positivo, mas as 2:30min passam
bem, você não sente cansaço. Os diálogos não são rimados, como em Cyrano de
Bergerac, outro filme que adoro, e há bastante repetição de frases finais, para
marcar o sentimento dos personagens. Os atores são todos bons e conseguem
representar mesmo cantando (acho isso mais difícil). Figurino e trilha sonora
não deixam a desejar. Quanto à maquiagem, o protagonista e o anti-heroi não me
pareceram envelhecer adequadamente.
O filme é bem dirigido, enfatiza algumas partes que para mim
não eram tão destacadas no livro (não sei se me lembro bem), como as artimanhas
do casal inescrupuloso que se aproveitou de Cosette e sua mãe, e passa mais
batido por outras, como o sofrimento da mãe de Cosette, a vida da menina e as
fugas de Valjean pelos esgotos da França – isso lamentei, no livro me pareceu
mais claro que se pretendia jogar os miseráveis para a periferia, os esgotos,
mas que de algum modo eles voltavam, emergindo de si próprios.
No cômputo geral o filme é bastante fiel à obra. Não há
maniqueísmos, exceto quanto à visão da igreja, que é a boazinha da história.
Mas vemos pobres honrados e vilões, ricos conscientes (na verdade só o Marius,
a princípio), homens da lei sem honra e condenados com uma consciência de fazer
inveja a qualquer cristão.
O início do filme é uma cena linda, gigantesca, daquelas que
você tem que ver no cinema mesmo. O ritmo da corda sendo puxada lembrando as
marés, o coração, o próprio ritmo da vida dos miseráveis, trabalhar, trabalhar,
sem descanso, reconhecimento ou retribuição.
Em seguida somos confrontados com o significado inexistente
da justiça (meu marido sempre me diz que se escreve com J maiúsculo, mas eu me
nego. Se fosse, eu escreveria, mas como é injustiça, é tudo pequenino). O cara
rouba um pão para alimentar o filho da irmã que tinha fome, e por isso passa 19
anos preso. Esse prisioneiro, Jean Valjean, dá uma demonstração de força
absurda erguendo sozinho uma tora gigantesca e é bem observado pelo policial
Javier (foto abaixo) nessa hora.
Ao ter sua condicional, leva como carma eterno a carta de
ex-presidiário, o que lhe impede de obter qualquer emprego ou moradia, e então,
escravo do sistema que só aprisiona, corpos e almas, está pronto para desistir
(existe liberdade?).
Inesperadamente Valjean (foto abaixo) é
acolhido por um padre/bispo que lhe oferece comida e abrigo por aquela noite.
De madrugada, rouba prataria e outras coisas e foge, totalmente desacostumado
que estava à caridade. É capturado por policiais que o levam à casa do pároco
que, para a surpresa do nosso protagonista, confirma sua mentira de que tinha
dado os pertences ao fugitivo e acrescenta ainda que ele esqueceu dois
castiçais, os mais valiosos. Só por causa disso o homem não retorna ao inferno
da prisão. Fica sem entender a atitude do padre e este lhe diz que Deus lhe deu
uma segunda chance – aqui a igreja deve ter adorado, o filme todo é pró-clero.
O que um ato de bondade pode fazer com uma pessoa!? Nosso
heroi muda, esquece o ódio com que foi tratado pelo mundo, se envergonha de sua
atitude e refaz sua vida rasgando a carta de ex-preso. Nunca se apresenta ao
agente da condicional e, 9 anos depois, é prefeito exemplar de uma cidadezinha
francesa. Até que...
Na fábrica que ele agora dirige, muitas mulheres passam o
dia ganhando o pão a custa de muito suor – bom retrato (de época ?), uma em especial se destaca pela beleza e é cobiçada
pelo encarregado, a quem, no entanto, ela se nega. As outras têm inveja.
Interceptam uma carta para essa mulher que diz que sua filha está doente e ela
precisa mandar mais dinheiro. Contam ao encarregado, que se sente humilhado por
haver sido preterido por uma mulher que já teve filho com outro e, pressionado
pelas ‘colegas’, a demite.
O prefeito não chega a saber da história toda, pensa que o
encarregado agiria com justiça. A mulher se desespera (foto abaixo). Na tentativa de
conseguir dinheiro para a filha, vende os longos cabelos e até dentes, imagine!!
É a humilhação máxima, a degradação humana, a esperança e o sonho que morrem, a
juventude que se despedaça, o amor pela filha cegando-a para a situação de
exploração que vivencia e se submete. Sequer pensa que pode estar sendo usada
pela família a quem paga para tomar conta e alimentar a menina. Se prostitui,
fica gravemente doente, dá um tapa em um homem ‘de bem’ com quem não queria
transar, o policial Javier chega, o homem conta sua história mentirosa, o
inspetor finge que acredita, porque era uma pessoa de ‘nível’ falando, e já ia
mandar prender a mulher quando chega também o prefeito. A mulher resume a
história da fábrica, conta de sua filha, Cosette, o prefeito se sente culpado e
quer ajudá-la. Intervém, evita a prisão e a leva ao hospital.
Um parênteses: em algum momento anterior, Javier conhece o
prefeito e desconfia que ele seja o tal Jean Valjean,
manda investigar, mas recebe informação de que o outro continua prisioneiro e
será condenado à morte. Depois, vê o prefeito levantando novamente um tronco
pesadíssimo que estava a esmagar um trabalhador e volta a sua mente a cena
inicial do filme. Tem certeza de que é a mesma pessoa e, ao revelar que o preso
será condenado à morte, nosso heroi tem um profundo drama de consciência. Ele
poderia ficar na dele, tem a oportunidade de escapar do castigo, mas sua honra
fala mais alto. Pensa nos operários da fábrica que dependem dele, em Cosette,
mas também no pobre homem que perderá sua vida. Vai ao tribunal e diz que ele é
Jean Valjean. Como se tratava de um prefeito,
o juiz diz que ele não deve estar se sentindo bem. Valjean
diz que vai ao hospital saber da mãe de Cosette e que retorna para entregar-se
– aqui novamente a justiça se fazendo de
cega quando convém.
Jean Valjean adentrando no tribunal e confessando a verdade
No hospital, a mulher está morrendo. Valjean promete que cuidará de sua filha e ela vai em paz. Javier chega para
prendê-lo, mas ele escapa porque antes quer resgatar Cosette. A menina é
duramente explorada por um casal inescrupuloso, que tem outra filha, Etienne, a
quem tratam como uma princesa, enquanto Cosette é a gata borralheira. Depois de
ser extorquido, o ex-prefeito leva Cosette, mas é perseguido por Javier. Escapa,
porém, e mais 9 anos se passam.
Cosette agora é uma linda moça. Na França do século XIX os
jovens exigem uma revolução, as injustiças sociais não foram resolvidas com a
queda de um rei. Depois de um vácuo, outro rei ocupa o poder e nada mudou. O
povo parece que apóia a revolução e os jovens sonham com um amanhã melhor. Um
dos líderes da revolução é Marius, de família rica, que se apaixona por
Cosette, e é recíproco, mas ele é também o amor de Etienne.
A moça, agora meio maltrapilha, está com os pais inescrupulosos pelas ruas, era a irmã de criação
de Cosette que no atual instante leva ‘vida boa’ – como
na vida os papéis se invertem, não? A gente pensa que ela será mau caráter, mas
não. Tudo o que faz é ajudar e depois apodera-se de um bilhete que Cosette
deixa para o amado antes de ser obrigada a mudar-se com o pai adotivo devido à
perseguição de Javier.
Há um menino, Gavroche, inspiradíssimo, que é a alma da
revolução. Delata Javier, que tentava se infiltrar entre os rebeldes.
A moça
Etienne se joga para proteger o amado Marius de uma bala, é ferida e acaba
morrendo nos braços de seu adorado. Antes, porém, tem tempo de entregar-lhe o
tal bilhete. Marius manda Gavroche levar um bilhete resposta e é Valjean quem o recebe. Não fala nada para a filha e abre mão de sua fuga, de sua liberdade,
para salvar o grande amor da filha. O sacrifício dos mais velhos, dos pais.
Decide ir lutar pela revolução também. A esta altura Javier está prestes a ser
enforcado e Valjean pede que lhe deem o prisioneiro, o que é aceito. Ao invés
de ter sua vingança, como espera Javier, o heroi finge que o mata e na verdade
o liberta. Javier não entende. Diz que não se sente em dívida e que o caçará
novamente.
Na hora H o povo se omitiu e os
jovens ficaram só, com o exército francês avançando impiedosamente.A
inocência do idealismo se apresenta, simbolizada pela morte violenta de
Gavroche. Praticamente todos os jovens morrem na luta, exceto Marius, que é
salvo por Valjean, que o carrega, ferido, por esgotos imundos (Marius, no
entanto, desconhece esse fato).
Próximo à saída do esgoto, encontra novamente o
casal inescrupuloso, que lhes rouba o anel. Quando o jovem se recupera,
Valjean, ainda fugindo, teme por Cosette. Até hoje, malgrado as insistências da
moça em saber a verdade, ele nunca a havia contado. Relata para Marius, mas o
faz prometer que apenas dirá à filha que o pai saiu numa longa viagem. Ao saber dessa meia verdade, ela se
entristece, não entende, mas segue a vida. Vai casar-se com Marius, que voltou
à sua boa vida burguesa (aqui uma discussão: então se o povo não apoiou sua luta, que deveria ser a de todos, e ele
perdeu todos os seus amigos, culpando-se por ter escapado, é hora de esquecer e
voltar ao que é bom, a riqueza, a fartura??).
Enquanto isso Javier não se
aguenta. Tem dúvidas, questiona afinal se Valjean é do céu ou do inferno. Não
aceita que Valjean seja tão melhor que ele. Ele que sempre foi duro, impiedoso,
intransigente na obediência cega à lei, agora balança, mas não consegue mudar. Perde-se de si mesmo e condensa em
uma frase seu gesto de suicídio: “Ele
(Valjean), ao me salvar (do enforcamento), me matou mesmo assim”. Joga-se
de uma ponte.
É o dia do casamento de Cosette e
Marius. Há festa na mansão. Marius reconhece
o casal inescrupuloso e o anel roubado e o
homem lhe conta onde Valjean está: na velha igreja, morrendo Marius compreende que foi ele quem lhe
salvou, tira Cosette da festa e a leva até o pai. Ela lhe dá carinho, ele diz que
já pode morrer em paz, ela diz que não, ele retruca com “isso, Cosette, me
proíba de morrer, eu tentarei”. Aparece a imagem da mãe de Cosette vindo
buscá-lo, dizendo que ele fez o bem, que irá agora para um lugar sem sofrimento
(a igreja vibra de novo). Antes de partir, ele deixa um bilhete de explicação à
Cosette, enfim.
Imagens dos sonhos com o amanhã, dos
jovens revolucionários ainda vivos aparecem, mostrando que há esperança, que há futuro. A música é
vibrante, dizem a frase “Que o vinho da amizade nunca seque”. Eu choro de me
acabar.
Li muito rápido “A ilha sob o mar”, meu primeiro livro (isso é lamentável, D. Rita) de Isabel Allende. Não conseguia largá-lo. Amei, por vários motivos: muito bem escrito, história interessante, fatos históricos que na minha ignorância eu desconhecia e, sobretudo, a visão da injustiça abissal que foi a escravidão.
Ora, me dirão vocês, descobriu a pólvora agora? Não, claro que não, porém o livro contribuiu para que eu pudesse ver com olhos mais sensíveis os absurdos que aconteciam no pensamento e comportamento ditos humanos antes da libertação e, ainda, como os ranços desse sistema permanecem e são, com licença da má palavra, tão escrotos até os nossos dias.
Acho muito importante falar sobre isso porque é uma reflexão que nem a escola e seus livros ‘didáticos’ nem as novelas de época nos ajudaram a fazer. Sempre se tratou a escravidão como um erro, um fato histórico lamentável, os mais progressistas davam a visão mercadológica, do interesse econômico sempre por trás de tudo, mas sem ênfase nos horrores cometidos contra o ser humano. E isso é fundamental porque é o que nos faz sentir a revolta, o estômago embrulhado e, portanto, não coadunar mais com qualquer tipo de preconceito.
Deixo com vocês uma das poesias que fiz ao terminar a leitura.
Hermann
Hesse dizia que “Ler um livro
é para o bom leitor conhecer a pessoa e o modo de pensar de alguém que lhe é
estranho. É procurar compreendê-lo e sempre que possível, fazer dele um amigo.”
Não
concordo com essa afirmativa, pois jamais poderia, por exemplo, fazer de Humbert
Humbert, de Lolita, um amigo. Ah sim, sempre
que possível... muitas vezes não se pode nem pensar nisso, mas ler um livro
tem muito de conhecer as pessoas e seus modos de pensar.
Arrasto-me,
desde agosto de 2012, na leitura de “O caminho de Swan”, primeiro volume de sete
da obra prima de Proust, Em busca do tempo perdido. Não gosto do livro? Gosto
sim, mas algo me trava a leitura e ele fica ali, na bolsa lateral do meu carro,
opção para engarrafamentos e curtos tempos de espera.
Nunca me
aconteceu isso antes com um livro. Em geral leio rápido ou então desisto, como
fiz com Ulisses, depois de 60 áridas páginas. Mas Proust é outra coisa. O homem
conhece a alma humana e me ensina sobre relacionamentos, ou pelo menos eu penso
aprender. Por que então essa lentidão? Será que caminho na velocidade que me
permito conhecer os outros, ou complementando a frase de Hesse, a mim mesma?
A música fala do mestre Jonas e da baleia, mas eu pergunto:
Jonas, e a baleia?
Das magias de um livro está o poder de fazer-nos pensar o impensado, até então. Eis que me deparo com Melville descrevendo a cabeça de uma baleia. Que coisa mais sem importância para mim, que não nutro sentimento qualquer especial pelos cetáceos. Mas não, a alma é maior do que isto e sim, se interessa.
Descreve-me ele a curiosa visão do cachalote, que tem os diminutos olhos onde temos os ouvidos. Uma visão lateral. Na grande cabeça, composta de muita pele e gordura, o vazio imenso entre os dois olhos abrigado por um único osso, perto da boca, que ficaria, em nós, abaixo do queixo. Que coisa tão diferente!
A baleia enxerga duas imagens distintas simultaneamente, não sei se consegue processar ao mesmo tempo ou como é que é seu funcionamento cerebral, mas isso não me importa, pois o que abstraio dessa leitura é um encantamento muito maior: comparo a limitação de nossa visão de mundo ao conhecido, às imagens que temos, formadas e deformadas a partir do ponto de vista que alcançamos, como no poema de Gibran (veja abaixo), que conheci através da amiga e psicanalista Ceci - a mão vendo o que está ao seu alcance, os ouvidos idem, o nariz também e, o olho, ainda que consiga ver além dos outros sentidos, e portanto para estes esteja a delirar, também é limitado.
Aí penso com seus ouvidos, troco minhas mãos pelas suas, meu nariz por cheiros e odores dessabidos, e meus olhos se fecham para enxergar muito mais: as diferenças, a amplitude das possibilidades. Penso se eu fosse uma baleia (sem trocadilhos, por favor, rsrsrs), se a minha visão de mundo seria limitada ou ampliada pela nova capacidade física, objetiva, como isso afetaria a minha subjetividade.
Acho essa extrapolação tão excitante, discuto com meu filho e ele me diz que o cérebro se adapta e que se passarmos uma semana andando de ponta cabeça - segundo ele essa experiência já foi feita por cientistas - então nosso cérebro inverte as imagens e vemos como se estivéssemos apoiados nos próprios pés. E mais, me conta que se fosse uma baleia andaria meneando a cabeça para os lados, como um neurótico, e teria assim a visão de 360º. Se cansasse, simplesmente andaria de frente, com o pescoço para o lado. Eu digo que poderia andar de lado, que talvez eu andasse de lado, olhando para a frente, e ele diz que eu poderia, mas que seria idiota porque de frente se andaria muito mais rápido. E tece ainda considerações sobre colocar um espelho preso ao rosto e assim ter a visão completa e outras coisas pragmáticas.
Mas, mesmo concordando com essas ponderações, por certo lógicas e inteligentes, meu pensamento vagueia e paro no final da página 375 de Moby Dick:
"Sir William Jones, que lia em trinta idiomas, não era capaz de ler a mais simples face de um camponês em seus mais profundos e sutis sentidos, como pode o inculto Ismael (narrador do livro) pretender ler o que se esconde na fronte de um cachalote? Não faço mais do que simplesmente apresentar essa fronte diante de vós. Lede-a se sois capazes disso."
Poema de Gibran mencionado no texto:
O OLHO
Um dia disse o olho: "Vejo, além destes vales, uma montanha velada pela cerração azul.Não é bela?"
O Ouvido pôs-se à escuta e, depois de ter escutado atentamente algum tempo, disse: "Mas onde há qualquer montanha? Não a ouço"
Então, a Mão falou: "Estou tentando em vão senti-la ou tocá-la e não encontro montanha alguma".
E o Nariz disse:"Não há nenhuma montanha. Não sinto o cheiro"
Então o olho voltou-se para outra parte, e todos começaram a conversar sobre a estranha alucinação do Olho.
Hoje faço 20 anos de casada. Procurei na internet e vi que
são bodas de porcelana. Achei lindo. Toda boda devia ser essa porque é algo
muito delicado, sofisticado, belo e quebra muito fácil. Que analogia tão própria
para o amor, não?
A melhor coisa de estar completando essas duas décadas de
vida em comum é que absolutamente não sinto esse tempo. Sei lá, cinco anos,
talvez? Rio com meu amado, rio do meu amado, rio de mim, sempre alvo de troça
dele e dos filhos. O amor sem o riso não tem graça, literalmente.
Não sei dizer se o amor é eterno, não tenho receitas de uma
convivência harmoniosa, nem acredito nisso. O conto de fadas existe lá, na vida
real erramos, acertamos, fazemos a conta de chegada e se tiramos daí um
denominador comum, o que não tem nada de trivial, isso é o que importa.
Espero poder comemorar muitas outras bodas com meu gato, que
sempre faz a minha vida mais bela e gostosa.
P.S: E falando em porcelana, deixo com vocês a última estrofe de
um poema meu (A descobrir) e um dos poemas do meu amor, novaes/ (Quebra), também sobre porcelana.